quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O Processo (Franz Kafka) [2]

MUITO ALÉM DA BUROCRACIA

Considerado a obra-prima do escritor tcheco Franz Kafka, O Processo, publicado postumamente em 1925, conta a história de um homem que é processado sem saber o motivo. Aparentemente, a narrativa cria uma alegoria que pode ser entendida como uma crítica à burocracia exacerbada dos aparelhos judiciários. Entretanto, vai mais além, toca o íntimo da condição do homem, preso em si mesmo pelas leis sociais.

Ao acordar na manhã de seu trigésimo aniversário, Josef K. é surpreendido por um homem que o detém, por ordem de superiores. Logo, K. descobre que fora acusado por um crime do qual ele e os seus próprios detentores desconhecem. Tem início, então, um desgastante processo, promovido por uma justiça também desconhecida, que atua nas mais improváveis sedes, localizadas nos subúrbios de uma cidade sem nome. Josef K. passa a transitar por repartições esquisitas, lidando com os mais diversos funcionários e conhecendo outros acusados que há anos se encontram em sua mesma situação. Tudo isso na tentativa de descobrir o possível crime pelo qual está sendo acusado e tentar encontrar subsídios que possam provar a sua inocência. Mas com a quantidade de entraves burocráticos que K. encontra pela frente, tudo se torna inacessível. É como se o principal objetivo dessa justiça anônima fosse criar uma complexidade do nada para o nada, com o único objetivo de tornar as leis e a justiça impenetráveis ou inescapáveis.

Contudo, o que se pode observar é que Josef K. é um preso livre. Em nenhum momento ele é encarcerado, mas se sente de mãos atadas da primeira à última página do livro. É a sua condição enquanto homem: está preso nas leis e nas condutas morais que regem a sociedade. É como se, ao descobrir isso, Josef K. procurasse se libertar, mas de uma maneira legal, sem burlar as leis que o perseguem e tiram o seu fôlego. Todo esse esforço acaba fazendo com que ele seja esmagado pela força incomensurável dessas leis.

Outra interpretação que costuma ser difundida pelos críticos de Kafka é a da relação entre O Processo e a aversão aos judeus. Segundo essa ótica da leitura da obra kafkiana, o processo instaurado contra Josef K., por uma justiça clandestina, sem motivo aparente, seria na verdade uma metáfora às perseguições sofridas pelos judeus na Europa. Perseguição sorrateira, silenciosa. Exatamente o tipo de perseguição que Josef K. sofre. Sem grandes alardes, o protagonista se vê preso em liberdade, como se fosse constantemente observado e obrigado por si mesmo a manter cautela.

É também a partir desse ponto de vista que se pode sugerir a ligação mais íntima entre autor e personagem; realidade e ficção - já que Kafka era judeu. Além disso, K. é a inicial do nome de Kafka e também é a forma mais corrente com que o protagonista é mencionado no livro. É até óbvio fazer a ligação entre Josef K. e Franz Kafka. Parece muito simples assegurar que é o próprio Kafka que está fielmente ali, descrito das páginas de O Processo. Porém, como já foi dito acima, a impossibilidade de se encontrar as intenções do autor parecem evidentes. O máximo que se pode fazer a esse respeito é especular, é supor. O que de maneira nenhuma é um incômodo, pelo contrário, parece ser mais um desafio, um estimulo à imaginação. É um dos pontos que podem ser considerados como responsáveis por tornar a Literatura tão grandiosa, poderosa.

Quanto à linguagem, pode-se dizer que O Processo é um romance extremamente burocrático. Essa parece ter sido uma das preocupações de Kafka: construir um texto travado como a justiça que Josef. K. tem que enfrentar. Um texto que precisa de paciência e dedicação para ser lido, cheio de detalhes e minúcias. Porém, de maneira nenhuma ele se torna chato ou desinteressante. Essa linguagem atende mais a uma questão estética do texto mesmo, é como se Kafka quisesse fazer o seu leitor sentir a mesma sensação de sufocamento que Josef K. sente ao longo da narrativa.

Além disso, é constante a presença de um tom irônico que dá certa comicidade ao texto. Um sarcasmo inteligente que é acentuado pela presença de elementos surrealistas. Surrealismo que aparece em várias cenas, como por exemplo, em uma passagem em que Josef K. encontra seus detentores sendo castigados embaixo de uma escada no banco em que o protagonista trabalha. É quase uma cena bizarra, a sua improbabilidade rompe com a lógica. Aliás, romper com a lógica parece ser bastante comum em Kafka. Não que isso seja ruim, pelo contrário, a irrealidade criada pelo autor dialoga perfeitamente bem com a realidade cotidiana, tanto que o leitor, muitas vezes, pode ter a sensação de que os aspectos surreais com que se deparam na leitura são naturais e possíveis.

O livro inteiro é marcado pela presença de uma força esmagadora que pressiona protagonista e leitor. Kafka consegue fazer com que o leitor sinta, simultaneamente, o mesmo sufocamento de sua personagem. A tensão da narrativa é carregada, assim como a atmosfera abafada dos ambientes idealizados, que fazem o protagonista e o leitor suarem. A mesma agonia que Josef K. sente ao percorrer com suas pernas os espaços sujos, velhos e amarelados que servem de cenários à narrativa, pode ser sentida também pelo leitor, quando este percorre com os olhos os mesmos espaços.

O texto de Kafka é, antes de tudo, uma obra de arte esclarecida e inteligente. Ao contrário de sua protagonista, O Processo não está encarcerado em liberdade, não se limita ao que está explicitamente escrito. É um livro que vai além, propondo leituras distintas.

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